Autora:
BARROS, Antonio Iramar MIranda
ISBN: 978-65-87429-08-3 (impresso)
ISBN: 978-65-87429-09-0 (e-book/pdf)
Ano de publicação: 2020
162 páginas
Como citar:
ABNT: BARROS, Antonio Iramar Miranda. Pequena Felicidade. Sobral-CE: Editora SertãoCult, 2020.
PREFÁCIO
Ao redor da fogueira da palavra estamos todos nós. De sentidos textuais e vivências o mundo se faz e se refaz. E num contexto em que se pensa que “as palavras sejam a verdadeira expressão da realidade” (RANCIÈRE, 1994, p. 186), o historiador escreve. A História se escreve. Por isso, a força dos livros cheios de palavras, espanto interminável, sendo que o texto do historiador é um texto pleno, na medida em que é um esboço narrativo e argumentativo, nascido de certa realidade vivida e inquirida. Suas palavras levantam a poeira do tempo, transformam em fluxo o fixo. Remediam o tempo escoado, ancoram o passado vivido por outrem, no fogo-fátuo do presente vivido, no aqui e no agora. Por isso, “Cada história, um brilho nos olhos, ênfase nas palavras (…)”. Nesse sentido, os discursos são importantes. As palavras são importantes. Uma passagem da canção Palavras, de Sergio Brito e Marcelo Fromer, dos Titãs, explicita um pouco essa questão: “Palavras eu preciso/Preciso com urgência/Palavras que se usem/em caso de emergência/Dizer o que se sente/Cumprir uma sentença/Palavras que se diz/Se diz e não se pensa”. As palavras dos historiadores procuram, entre outras coisas, cumprir uma sentença, muito bem salientada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade sobre o historiador: “Veio para ressuscitar o tempo e escalpelar os mortos, as condecorações, as liturgias, as espadas, o espectro das fazendas submergidas, o muro de pedra entre membros da família, o ardido queixume das solteironas, os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas nem desfeitas. Veio para contar o que não faz jus a ser glorificado e se deposita, grânulo, no poço vazio da memória. É importuno, sabe-se importuno e insiste, rancoroso, fiel”. O historiador, com suas palavras e posições, é importuno, sempre, e assim cumpre com sua tarefa.
O historiador escreve. Mas escreve só História? Não, claro que não! Langlois e Seignobos foram categóricos com relação a isso: “Para levar a bom termo sua tarefa, para desempenhar plenamente sua função, é necessário que o historiador seja também um grande escritor” (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1992, p. 238). Eis o caso específico de Iramar Miranda: um professor e historiador que escreve um romance. Outros historiadores escrevem poesia, outros atuam, pintam, desenham, cantam, compõem. De todo modo, estamos todos ao redor da fogueira da linguagem em sua força múltipla e visceral. Essa questão, por outro lado, não afasta o Historiador de seu compromisso com a construção correta e bela de sua narrativa historiográfica. Não basta escrever bons romances, precisamos necessariamente escreve muito boa História.
Pequena Felicidade é o nome do romance. No entanto, o adjetivo pequena para identificar a cidade não deve nos iludir, porque, na verdade, esconde o verdadeiro tamanho daquela Felicidade. A sua dimensão real e ficcional tem o tamanho do sonho dos moradores do lugar. Por exemplo, Antonio Palhares da Silva, ou melhor, Palhares, que “manifestava contentamento ao ver que os [seus] interlocutores viajavam com ele nas palavras”, um menino altivo e vivaz que ascende na narrativa como o ponto axial do dia a dia em Felicidade. Palhares busca constantemente sua felicidade em Felicidade. Mas “Felicidade não lhe atraía.” Essa tal felicidade, a princípio, tem duas dimensões: possuir uma bicicleta e ser correspondido por Maninha, sua bem-amada. Vendedor sagaz de picolés e balinhas, sabia que “Na projeção que ia, fizera as contas e em espaço de mais ou menos uns dois anos, já poderia comprar sua tão sonhada bicicleta, mesmo que fosse de segunda-mão”. Apaixonado, com relação a Maninha, pois por “ela nutria um sentimento todo especial e que por vezes em sala, a ela tentava chamar a atenção”. Maninha, “moça com roupas negras e olhos circundados, botas grandes e laço no cabelo”.
Mas Palhares queria era ser doutor. Um menino conversador, que “muito se satisfazia com as lições que aprendia no colégio. Não era tão somente somar ou diminuir. Ler lhe dava uma sensação de poder. Decifrar os códigos das letras e apresentar para a turma, além de ter a alegria de ver sair do lápis entre seus dedos o que somente ele pensava em sua mente lhe ocasionava uma sensação de diferença entre todos de sua casa e sabia que, daqueles aprendizados, surgiria a transformação de sua vida”. A leitura como poder, como mudança. Transformação. Escrita como pharmakon. Palhares, de certo modo, repete o Mito da Escrita na perspectiva platônica, em que, tendo sido criada por Thot, deus egípcio, a escrita-phamarkon se apresenta para os homens como remédio ou veneno, sintoma da rememoração ou da memória. A escrita em sua “eficácia oculta, próxima da magia, tanto do “livro” quanto da “droga”” (NASCIMENTO, 2015, p.117), “droga” essa entendida enquanto suplemento, ou seja, prescrição médica. Para Palhares, os conhecimentos aprendidos na escola eram o seu suplemento diário, ainda que parte de sua aprendizagem tenha nascido ouvindo no rádio, um velho rádio que seu avô, Sebastião Palhares, fã de Getúlio Vargas, diga-se de passagem, comprou depois de uma bem-sucedida colheita de algodão…
O romance apresenta para nós a vida de Palhares, de seu melhor amigo, Carlinhos, que um dia foi levado embora por ciganos que acamparam na cidade, deixando um certo vácuo na vida de Palhares, o dia a dia da única bodega da cidade e seu frenesi, com seus bêbados e clientes diários. Estamos diante de um panorama muito bem escrito do cotidiano de uma pequena cidade encravada no sertão, com seus costumes e valores aflorados. Com os festejos do padroeiro, a presença da mais conhecida Beata, dona Tereza, os bêbados, como João Bichim, assíduo frequentador da bodega do seu Zé Simão, entre tantos personagens importantes para o entendimento do lugar. Inclusive o senhor Adalberto Monte, falante e articulado, era o cabo eleitoral do vereador Arteiro do Povo. Assim era a Pequena Felicidade. A partir da obra, no entanto, concluímos que as duas pessoas mais importantes do lugar (excluindo-se, naturalmente, Palhares), eram na ordem, a parteira, dona Maria Rosa, a Mãe Rosa, que praticamente “pegou” todo mundo na cidade, e padre Romualdo, que “esbravejava nos sermões das missas e novena àquela situação promíscua que tomava conta do lugar”, especialmente depois da chegada das mariposas na cidade.
Sobre Felicidade, a pequena cidade, temos a alusão bem articulada à busca constante da felicidade por parte de Palhares e de cada morador. Palhares, que “Nas aulas de História, enfrentava inimigos armados nas grandes batalhas, sempre ao lado do exército vencedor. Chegava a se pensar às vezes nas mesas de negociações, organizando as partilhas dos territórios conquistados, sempre querendo a melhor parte para a sua nação”. A História é uma de suas formas de felicidade. Estudar História é mais do que isso: “costumava relacionar seu lugar com os grandes acontecimentos da História”, abrindo espaço fundamental para uma questão vital para a História, uma vez que esta ciência “pretende levar, pela imaginação, a re-apreender, re-compreender, re-presentar uma vivência do passado (…)” (PROST, 2008, p. 244).
Encontramos também em Felicidade aqueles e aquelas que, ao longo do tempo e da História, e principalmente em nossos dias, tomam para si certo padrão de vivência e de convivência, modelo exemplar de ética e verdade: os homens e as mulheres de bem. Essa questão fica muito clara nas palavras de padre Romualdo: “Eu já disse mil vezes que o diabo habita entre nós e que é muito fácil de reconhecê-lo. Podem ter certeza que o diabo veste saia e, vez por outra, vem pra casa da colina, mexer com os casais e com as famílias de bem”. Portanto, as mulheres de bem da cidade não devem e não podem usar saia. Coisa de puta!!!
Ler o romance é experimentar, de forma vivaz, o pé do balcão da bodega de seu Zé Simão. É estar ali e ouvir o vozerio dos fregueses. Quase sentimos o cheiro da cachaça serrana, e quase vemos a destreza de Palhares diferenciando uma dose de uma terça de cana… Para nós, leitores, talvez reste o mais importante: a dose do santo, aquela jogada ritualmente ao pé do balcão. Em Felicidade tudo pode acontecer: a chegada do circo, dos ciganos, do lobisomem que devora pagãos… Mas, principalmente, a imaginação e audácia crítica e sarcástica de Palhares.
Iramar Miranda deixa transparecer em seu belo romance as “marcas da historicidade” (POMIAN, 1989, p. 38). Essas marcas sensíveis permitem que o leitor se remeta para fora do texto, para uma realidade extratextual que serviu de certo modo de mote e de memória, porque toda literatura é filha dileta da memória, para a escrita da obra. Sobre o romance, portanto, posso dizer, citando o título de uma poesia de Paulo Leminski, que é o “Mínimo do máximo”. A Pequena Felicidade é o máximo de uma escrita que dissolve num enredo bem organizado os traços e as idiossincrasias de uma pequena cidade animada. De todo modo, essa obra de um Historiador nos faz refletir que “o historiador não pode escapar à literatura” (PROST, 2008, 247). O Historiador escreve e deve escrever bem, uma vez que para “representar e fazer compreender o passado”, nós só temos um caminho: as palavras.
Sobral, janeiro de 2020
Prof. Dr. Dênis Melo – UVA (Historiador)
Referências
RANCIERE, J. Histoire et récit. In: BALDNER, J.M. et al. L’Histoire entre épistemologie et demande social. Toulouse, Versailles: IUFM Crétil, 1994.
LANGLOIS, C.V.;SEIGNOBOS, C. Introduction aux études historiques. Paris: Kimé, 1992.
NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura. São Paulo: É Realização Editora, 2015.
PROST, Antoine. Doze lições sobre história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
POMIAN, K. Histoire et fiction. Ledébat, n. 54, mar/abr. 1989.
PROST, Antoine. Doze lições sobre história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.